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#6 Há males que vêm para bem. “Guerra de Santos” de Giovanni Verga (parte 1)
Transcrição

INTRODUÇÃO – 00:00 a 01:28

Olá meu querido e minha querida! Bem-vindo ao Literatura Viral! O podcast em que eu discuto literatura e epidemias. Meu nome é Áureo Lustosa Guérios, eu sou doutorando em Literatura Comparada. 
Até agora você me acompanhou em discussões sobre teorias antigas e ultrapassadas em certo sentido e três textos literários em que o medo e a angústia ocupam uma posição central, porque claramente é inevitável (risos) que o pavor e a histeria caminham de braços dados com fenômenos massivos e desconhecidos, imprevisíveis, como são uma epidemia, especialmente, pandemias. 
Hoje, no entanto, a gente muda o foco, porque eu também acho importante que nesse momento em que a literatura apocalíptica e distópica foi movida para a seção de história contemporânea, (risos) é importante a gente pensar que a literatura também tem muitos exemplos positivos para dar para gente, muitas visões interessantes e humanas, tocantes, e comoventes às vezes. E é por isso que hoje eu te convido a tratar de uma pequena obra-prima da literatura italiana - Guerra de Santos, de Giovanni Verga - e só para deixar claro, esse "Santos" não é o alvinegro.

A SITUAÇÃO DO CORONA EM MARÇO2020 – 01:29 a  04:29


Pelo amor de Zeus, chega de falar de medo e angústia, ansiedade, ninguém aguenta mais esse assunto. E é por isso que a gente vai abandonar ele aqui, por enquanto. E a gente vai deixar o medo de lado, para falar de coisas boas. Eu já falei como o medo e a angústia são sentimentos, algo ambíguos, porque sim, eles podem ser muitíssimos ruins e certamente eles não são agradáveis, mas por outro lado, eles podem condicionar uma reação social que é adequada em tempos de pandemia. 
Em um momento, em um presente histórico que a coisa provavelmente está só começando. Nós, verdadeiramente, teremos um desafio pela frente e é importante que a gente possa ter também visões positivas disso. - Eu não sei você minha querida, mas eu fiquei muito surpreso e tocado com várias coisas que eu tenho visto ao meu redor.
Há várias organizações voluntárias já pipocando em todos os lugares em que pessoas mais jovens se oferecem, se voluntariam para fazer compras, por exemplo, para pessoas mais velhas, ou pessoas que pertencem a grupos de risco. Ou então, os movimentos de agradecimento de manifestar a gratidão, que a gente tem visto em vários lugares do mundo em que as pessoas combinam um horário para virem às janelas e na sacada e aplaudirem o trabalho dos profissionais da saúde. Ou então o que a gente tem visto na Itália, de pessoas tocando canções nas sacadas dos prédios e, às vezes até pequenos consertos, bandinhas (risos)...
Todas essas são pequenas ações, mas são pequenos gestos que falam mais do que mil palavras. E que servem para que as pessoas possam motivar umas às outras e colaborar com aqueles que precisam de ajuda e para manifestar a gratidão para aqueles que realmente estão no olho do furacão. Os profissionais da saúde estão todos trabalhando à exaustão e cotidianamente colocando, reiteradamente, a vida deles em risco para proteger a vida dos outros. E a gente adora heroísmo. Quando a gente vai consumir mundos ficcionais através de filmes, através de videogames, através da literatura ou numa conversa de bar com os amigos, a gente adora as histórias de grandes atos heroicos. - "This is Sparta!" - mas a gente esquece que, na verdade, não existem heróis, existem atos heroicos. - Por mais que seja divertido e épico ver um rapaz carregar um anel durante mais de 10 horas de filme (risos), a gente esquece que o verdadeiro heroísmo no mundo real, às vezes se apresenta nesses pequenos gestos. A do profissional da saúde que vai passar 20 horas, muitas vezes em condições precárias, para tentar salvar o máximo de vidas que ele ou ela possa. - Então você pode me imaginar, com as minhas mãos juntas na altura do peito dizendo: "namastê, gratidão para caralho!" E, portanto, hoje a gente vai falar de compaixão.

UMA VISÃO POSITIVA DA DOENÇA – 04:30 a 07:06


O medo é um assunto muito interessante, muito complexo e muito pertinente, a gente vai voltar para ele em outras oportunidades. Mas nesse episódio e nos próximos, eu quero tratar de uma visão um pouco mais positiva também. Porque é importante a gente lembrar que existe essa dicotomia, existem várias perspectivas. E é verdade que na literatura (risos) a maior parte delas vai ser sim negativa, e também na vida real. A gente tem dentro da gente muitas vezes, o que em psicologia se chama "negativity bias", a gente tem uma tendência a um viés de negatividade. E é por isso que notícias que são notícias boas, atraem muito menos atenção e tem muito menos “likes” e muito menos “shares”, do que notícias que são ruins. De uma certa forma nossa atenção é pré-programada para se atrair por coisas ruins, coisas ameaçadoras e, por isso, tanto em literatura, quanto em História, em crítica cultural, muitas vezes, o discurso sobre epidemias acaba se focando exclusivamente em tumultos, em violência, em perseguição. Isso é uma verdade (risos), é triste, mas é isso aí! Essas coisas acontecem! Em tempos de epidemia as pessoas perdem um pouco as Estribeiras, e muitas vezes quem acaba pagando o pato são as minorias, são os elos fracos da sociedade. No entanto, como nós mesmos estamos vivenciando agora, há muitos exemplos que aquecem o coração, exemplos de compaixão. E há um livro publicado por um historiador, um Acadêmico, chamado Samuel Cohn Júnior, que foi publicado há 2 anos atrás, em 2018, ele se chama “Epidemics: Hate and Compassion from the Plague of Athens to AIDS”.
Então ele traça uma história da compaixão e do ódio, em tempos de epidemia. Desde a antiguidade, da Peste de Atenas, que foi no século 4 antes da Era Comum, até a contemporaneidade, até a AIDS. E esse é um livro muitíssimo douto, o resultado de uma pesquisa que deve ter se estendido ao longo de décadas. É um livro muito denso, são umas boas 700 páginas, mas é um livro que para mim alterou muito da minha visão enquanto historiador da cultura e estudioso de literatura. Até onde eu saiba esse livro não está traduzido para o português, mas se você lê em inglês e se interessa pelo assunto, eu te encorajo fortemente a ir atrás dessa referência, porque se trata de um trabalho efetivamente excepcional.

GIOVANNI VERGA, O CÂNONE LITERÁRIO e BALZAC- 07:07 a 13:06


Portanto, me inspirando no Samuel Cohn Junior, eu resolvi discutir um texto que tem uma em pronta? um pouco mais positiva. É um texto que é um texto cômico, divertidíssimo, de um autor relativamente pouco conhecido fora da Itália, Giovanni Verga. O Verga é, na minha opinião, um desses escritores que tem menos renome de quanto ele mereceria. Na Itália ele é muitíssimo lido, muitíssimo apreciado. Mas eu acho que o espaço dele é ainda maior, ele merece um espaço maior, especialmente no panorama internacional. Infelizmente, na hora de determinar a qualidade artística, o mérito artístico de uma determinada obra de arte, - e isso é verdade não só para literatura, mas para todos os campos - há diversos outros fatores que vão além da estética, influências políticas, econômicas, pressões sociais, há diversas coisas que interagem com essa rede para estabelecer, o que a gente chama em literatura, de Cânone. Palavra que eu usei lá no segundo episódio! O cânone literário é um termo técnico usado pelos críticos de literatura, para se referir ao “corpus”, digamos assim, ao database (risos) de obras que são consideradas como obras clássicas, como referências e, portanto, canônicas. Você vai me ouvir usar o termo “canônico” ao longo de todo esse podcast, porque ele é um pouco melhor do que o termo “clássico”, embora esses termos funcionem como sinônimos às vezes. Mas o termo “clássico” é usado normalmente para falar da Grécia Antiga e da Roma Antiga. E, portanto, se eu digo que uma obra é um “clássico”, às vezes isso gera um pouco de confusão. Porque alguém pode pensar que eu posso estar querendo dizer que essa é uma obra da Grécia Antiga / Roma Antiga, e muitas vezes não é o caso. Então eu, particularmente, prefiro usar o termo Canônico, para evitar o rolo né? Porque hoje em dia, meu deus, para dar rolo, a gente não pede duas vezes! E, portanto, Verga é um escritor canônico e que tem um espaço grande dentro do cânone, mas que na minha opinião, merece um espaço ainda maior. Na Itália o Verga é muito apreciado como Romancista. Ele tem dois romances que são particularmente lidos: “Mastro Don Gesualdo” e “I Malavoglia”, que são obras que puxam um pouco para o naturalismo, para o determinismo. Pensa em um Aluísio Azevedo ou um Zola. Na minha opinião, no entanto, o melhor Verga, é o Verga dos contos. Ele é um contista de mão cheia, e eu espero que isso fique claro depois dessa discussão, espero estar à altura do texto. Portanto, depois de me ouvir gastar toda minha voz cantando essa serenata, vai lá comprar o livrinho dele! Dê uma Lida, se permita, mande uma mensagem para sua amiga aí: “Vou me dar de presente, o quê? um dia no spa? Não, um livro do Verga! ”. E se a gente tiver que pensar um pouco no contexto do Verga, no contexto em que o Verga escrevia na Itália, ele é um contexto, algo parecido mais ou menos com o do Machado, no Brasil. Então, ele pertence na literatura italiana a uma escola que é definida algo vagamente como “verismo”, que é o equivalente ao realismo brasileiro, entre aspas. De um modo geral, o “verismo” é uma resposta italiana a um projeto que foi em grande medida iniciado pelo Balzac.
Balzac concebe um projeto literário, que ele vai batizar de “La comedie humaine” - “A comédia humana”, fazendo referência a um certo poeta italiano que tem uma moral. (risos) E “A comédia humana” é um projeto gigantesco, efetivamente Megalomaníaco. O Balzac chegou a escrever 94 romances que pertencem a esse entrelaçado de obras. Muitos deles são inacabados, e ele planejava escrever ainda algumas dezenas mais. E o objetivo da comédia humana é de criar uma certa, uma réplica literária da sociedade francesa. Então Balzac realmente se via como um certo cientista, um certo analista da sociedade francesa, um sociólogo, se a gente quiser. E o Balzac é um grande cara. A gente gosta dele. Poxa, escrever 94 livros antes do Word, do open office, não é para qualquer um né! Eu tento imitar as dicas do Balzac, de beber dois litros de café por dia, mas olha, ainda to longe dessa produtividade! Já sofri para produzir o meu podcastzinho Aqui! E o Balzac vai ser um terremoto de magnitude 7 na escala richter assim! (risos) Vai realmente causar uma influência massiva na literatura produzida, do momento imediatamente posterior à ele. Ele vai criar uma avalanche, e a resposta a essa resposta chega mais ao longo do século 19 com as várias tendências realistas. Como tudo na Vida, tudo que eu disse sobre o Pasteur, em ciência, também é verdade sobre o Balzac, em literatura. Foi ele que fez sozinho? Claramente não! 
Assim como Pasteur Não fez nada sozinho. Mas ele tem um mérito que é incrível, é. Certamente tem, ambos né. O Verga já vai estar produzindo justamente nesse momento de final de século, e o conto que a gente vai analisar hoje é um conto publicado em 1880 num livro que se chama “Vita dei campi” - A Vida dos Campos. E esse livro recolhe dez contos, alguns dos quais vão ser realmente antológicos e muito lidos e são maravilhosos assim! Um deles era “Rosso Malpelo” que é sobre um menino ruivo visto como malvado; o “Cavalleria Rusticana” que imediatamente virou uma ópera de grande sucesso, então talvez você já tenha ouvido falar desse conto através da ópera. E um outro conto muito lido na Itália na Itália que se chama “La Lupa” - A Loba.

A GUERRA DE SANTOS - 13:05 a 21:52


O conto que a gente vai discutir, no entanto, se chama “Guerra di Santi” – Guerra de Santos, e eu vou usar aqui durante a discussão a tradução de Rina Malerbi Ricci. A história do conto se passa em algum lugar não identificado, alguma pequena povoação do interior, provavelmente da Sicília, se não, do sul da Itália. Se trata de uma sociedade agrária no final do século 19, então em torno de 1880 por aí. É importante dizer que não se vai falar muito de “o que causa uma epidemia”, então ao contrário de outros textos, como o do João do Rio, em que eu estava muito interessado em enxergar a presença dos miasmas naquele Texto, nesse caso o texto não se interessa em descobrir da onde veio a Doença. A função que a doença tem dentro desse texto é outra. Mas mais uma vez a gente já consegue ver o mesmo paralelismo que a gente encontrou na obra do Poe, por exemplo. Eu falei sobre como é importante para a literatura do horror que o lugar seja um lugar Impreciso. A mesma coisa acontece aqui com relação ao espaço e olhem como 0 conto se inicia: “De repente, enquanto São Roque seguia sossegado o seu caminho blá blá blá...”. O conto começa exatamente da mesma forma que o conto do João do Rio - A Peste. Enquanto que lá, o início era: “E de súbito um indizível pavor prega-me ao banco”. Então a gente começa no meio da ação - in media res - como se diz o termo técnico latino bonito. Aqui no Verga, ele começa Com: “De repente, (vírgula) enquanto São Roque seguia...”, alguma coisa já está acontecendo você começou “de repente” e “enquanto”, são duas referências Temporais. E aí entra um agente, o São Roque, que você nem sabe quem é. E um outro paralelo que a gente pode estabelecer é com o Poe, porque ele também faz exatamente a mesma coisa com “A Morte Rubra”. O Poe se permite a segurar um pouco a explicação, durante as primeiras frases, justamente para criar um certo suspense, para dar essa áurea dark. Então assim, a gente está vendo aqui um caso em que escritores diferentes estão usando elementos parecidos para causar efeitos completamente diferentes. E isso vai ficar ainda mais evidente na forma como o Verga se expressa (risos), que é a forma como ele manipula o vocabulário. Eu chamei atenção para o fato de que a descrição da paisagem do João do Rio envolvia vários termos médicos, termos de um campo semântico doentio, para causar repulsa. - E como esse era um mecanismo meio sem vergonha do seu João do Rio -, porque assim ele consegue condicionar a tua reação, sem que tu perceba. Eu também falei depois, no episódio passado, em como influenciar o leitor é justamente o ponto da literatura do horror. E o Poe fazia isso de várias formas, e uma delas era justamente empregando esse vocabulário áulico, em que ele diz: “o desenlace da moléstia”,(risos) ao invés de dizer: “o início da epidemia”. Já no caso de hoje, o Verga vai querer dirigir a nossa reação, também em parte através do vocabulário, e em parte através de um fenômeno de colagem. Ele é muito bom de cortar um “take” e abrir o outro, e isso já vai ficar mais claro no conto. “De repente, enquanto São Roque seguia sossegado o seu caminho debaixo do Baldaquim, com os cachorros seguros pela Coleira, grande número de círios em volta, a banda, a procissão, a multidão dos fiéis, aconteceu um deus nos acuda, um fim de mundo”. Então o que a gente tem aqui, a gente tem São Roque que prossegue sossegado o seu caminho debaixo de um baldaquim, - a gente pode até não saber o que é um baldaquim, mas a gente sabe que tem um grande número de círios, que são velas, mas a gente pode até também não sabe o que é círio, mas depois a gente já vai ouvir falar em procissão, em multidão de fiéis, em um deus nos acuda. Então todas as palavras aqui estão remetendo a um campo semântico religioso, o círio pascal, por exemplo. 
Basicamente o que está acontecendo é uma procissão de um santo, São Roque, que não é o santo do AC/DC, do Deep Purple... (risos), a fazer já vai falar um pouco melhor dele. Mas há uma procissão em que o São Roque está sendo carregado pelos fiéis e acontece uma confusão. É essa informação que a gente tem, essa confusão chega “de Repente”. E a segunda frase vai dar exemplos dessa confusão: “Padres que fogem levantando a batina, trompas e clarins no rosto, mulheres que gritam, sangue escorrendo e pauladas que chovem por todos os lados até debaixo do nariz do bendito São Roque”. Então, basicamente, de repente, começa um quebra-pau. Q que é que está acontecendo aqui? Eu ainda não sei! Próxima frase: “acorreram ao juiz, ao prefeito, a polícia; os ossos quebrados foram levados para o hospital, os mais briguentos acabaram dormindo no xadrez, o santo voltou a igreja, não mais como solene passo de procissão e a festa acabou como uma comédia de polichinelo. E tudo isso por inveja da gente do bairro de São Pascoal.” Então percebam que a gente já leu uma metade de página e a gente entendeu que: tem uma procissão, que houve um tumulto, que correu uma debandada geral, mas a gente não sabe nem porque o tumulto aconteceu. Mas ele foi sério, porque teve paulada, teve Sangue, teve de tudo. Há muitas coisas que precisam ser ditas sobre esse pequeno trecho, uma coisa que eu adoro é que o São Roque parece que ele é um agente, que ele é uma pessoa. Ele, embora seja um estátua de santo, ele seguia sossegado o seu caminho. Então se não fosse o “São”, se o nome dele fosse Paulo: “Paulo seguia sossegado o seu caminho...”, você teria a impressão que você está lendo sobre uma pessoa. E aí depois que rola uma confusão, e o que o São Roque faz? Cito: “o santo voltou a igreja, não mais com um solene passo de procissão.”. 
Então parece que ele estava caminhando, passeando, viu o quebra-pau, de repente ele virou as costas e voltou pra igreja. Então o fato de ele dar agência ativa a um objeto que está sendo carregado de forma passiva, já é uma modalidade interessante. É uma pequena inversão que vai ser usada muito nesse conto para criar pequenas nuances cômicas. A gente tem um outro indício desse tipo de estratégia no segundo parágrafo, quando ele fala: “acorreram o juiz, o prefeito, a polícia...”, existe uma enumeração de vários cargos, de várias autoridades, que vêm para botar panos quentes na situação, a gente tem um ponto e vírgula e a próxima frase diz: “os ossos quebrados foram levados para o hospital”, não são as pessoas que foram levadas (risos) para os hospitais, mas os ossos quebrados. Essa estratégia de denominar as pessoas através dos ossos, é aquilo que nas figuras de linguagem a gente vai chamar de uma metonímia. Uma metonímia que denomina a parte pelo todo ou o todo pela parte, que é parte daquele número infindável de coisas com os nomes Complicados, que fizeram a gente decorar nas escolas e que não serve para muita coisa. No meu caso serve para eu passar de inteligente no podcast, mas no caso dos outros, tenho minhas dúvidas!
Voltando a nossa cena, chegam as autoridades, as pessoas feridas são levadas ao hospital, os mais briguentos acabaram dormindo no xadrez e o santo volta pra igreja. E agora a gente já pode começar a entender o que aconteceu aqui. E eu já vou entregar o ouro na mão do bandido antes da gente continuar, o que está acontecendo aqui é o equivalente a uma briga de torcida, na verdade. (risos) A pequena cidade dividida e no culto de dois santos. San Rocco, em italiano, que dá São Roque e o outro santo, San Pasquale, em italiano, que dá São Pascoal. A gente passa a saber disso no terceiro Parágrafo, quando o narrador diz: “e tudo isso por inveja da gente do bairro de São Pascoal”. Como a cidade é dividida em duas facções, a gente tem aqui um equivalente a uma briga de torcida. 
Se você quiser você pode imaginar Botafogo contra o Flamengo, ou então o Chelsea contra o Arsenal, não sei! Mas o caso é que nós temos devotos de santos diferentes que acabam saindo na mão. E isso por si só já é engraçado. Porque normalmente a gente pensa nos santos como trabalhando numa Coletividade, trabalhando juntos e não um contra o outro. A ideia de competição é imbuída na prática do futebol, mas a ideia de devoção aos santos não necessariamente. Se tratando de uma situação, algo absurda, isso por si só já é engraçado. - Eu dou risada até cair no chão nesse conto aqui, mas tudo bem que eu sou meio errado mesmo né, então!

CRITICA DE TRADUÇÃO -21:53 a 25:24


Antes de continuar, no entanto, tem mais uma coisa que eu preciso dizer desses primeiros dois parágrafos, veja como eles são ricos. É que aqui já há um indício de uma prática que vai se repetir ao longo de todo o conto, que é a de se referir a coisas religiosas, santos, padres, etc., usando um palavreado blasfemo, ou é blasfêmo? Ixi, agora vou ter que pedir ajuda aos universitários! Essa prática vai ser evidente ao longo de todo o conto, mas ela já aparece na quarta linha e eu acho ela muito divertida, embora ela não pareça tão bem na tradução. Antes de eu poder fazer esse comentário e ir ao texto original, eu preciso dizer uma coisa para ser justo com a minha colega Rina Malerbi. Quando se trata de crítica de tradução, é muito comum a gente ver o crítico adotar uma posição pomposa em que ele se permite atacar o texto dos outros, sem levar em consideração, minimamente, da onde o texto está vindo. É muito fácil dizer: “Ah, veja aqui como essa tradução está inapropriada!”, essa coisa pode ser feita com cinco minutos de pesquisa na internet hoje em ia, e você não precisa nem ter lido o livro para fazer isso. E permite ao crítico de, convenientemente, posar como um grande conhecedor de línguas. Portanto, existe na minha concepção, uma ética da crítica de tradução. Idealmente, o crítico da tradução de outrem deve sugerir a solução do problema, se ele ou ela não concordam com a solução que foi adotada pelo tradutor, é justo que eles digam “discordo dessa solução” e apresentem outra solução, que eles achem mais apropriado, que não é quase nunca o caso né! Se isso não for possível, eu acho que no mínimo é importante que a gente deixe claro quais eram as dificuldades que o tradutor estava enfrentando no texto original. Porque é muito fácil tacar a pedra na casa dos outros, quando a gente sabe que eles não têm direito de resposta. Eu mesmo já traduzir um outro conto do Verga, que foi publicado alguns anos atrás e, portanto, eu tenho muita consciência (risos) do meu teto de vidro. Então se eu for discordar da minha colega, eu certamente faço isso com um enorme respeito. Tendo tudo isso em mente, a gente já pode falar sobre o termo “deus nos acuda” que tá no primeiro parágrafo. 
Então a procissão está rolando, começa a pancadaria generalizada, a mulher que grita, é sangue que escorre, a criança que cai, é polícia que chega.. e o original retrata isso como - aconteceu uma confusão, um corre-corre, uma casa do diabo - “una casa del diavolo” - e essa expressão italiana quer dizer um “deus nos acuda”. E claramente a tradução “deus nos acuda” é uma tradução excelente, porque ela realmente dá ideia da confusão que está acontecendo e envolve a esfera religiosa. Só que ela não dá conta de uma terceira perna, que é a perna irônica! Porque se ele disse que essa confusão, além de ser um deus nos acuda, ela foi “a casa do diabo” - que é uma expressão que não existe em português - você já dá uma risada, porque é engraçado que “a casa do diabo” tenha acontecido durante uma procissão do santo Roque. Assim como uma pancadaria é inusitada, no mínimo, nesse contexto. Então a tradução que eu sugeriria seria “um pandemônio”. 
O “pandemónio” traz a ideia de confusão e mantém a ideia do demoníaco. Só que claramente essa não é a única oportunidade que o conto apresenta desse tipo de Brincadeira, então vocês vão ver vários outros exemplos. E por mais que o elemento do demoníaco talvez tenha se perdido no “deus nos acuda”, ele certamente aparece em vários outros elementos ao longo dessa tradução. 

A BRIGA NA GUERRA DE SANTOS - 25:25 a 29:53


E agora a gente já pode saber o motivo da briga (risos), Leio: “Os devotos de São Roque naquele ano haviam gasto os olhos da cara para engrandecer a festa. A banda veio da cidade, espocaram mais de dois mil fogos e havia até um standard novo, todo bordado em ouro. Sussurravam-se que pesava mais de 100 quilos, mas que no meio da multidão parecia em verdade uma espuma de ouro. Tudo isso mexia muitíssimo com os nervos dos devotos de São Pascoal, a ponto de um deles perder a paciência e pálido de raiva pôs-se a gritar: Viva a São Pascoal! Aí começaram a chover pauladas.” (risos) - ai é muito massa! -. Então a gente já vê, imediatamente, a sobreposição. Existe uma rivalidade entre dois bairros da cidade, essa rivalidade acaba transparecendo durante a procissão, e a exuberância das vestes do São Roque aviva a diversidade dos devotos de São Pascoal, então um deles grita “viva São Pascoal”. E aí, imediatamente o texto corre na mesma frase, a gente enxerga isso “viva São Pascoal! Aí começaram a chover paulada”. 
Esse é justamente o tipo de progressão veloz de corte e cinematográfico, de que eu falei anteriormente. Para o bem da verdade dizer “viva São Pascoal” nas barbas de São Roque em pessoa, é uma provocação das maiores. É como ir até sua Casa, para cuspir ou dar beliscões na mulher com quem você está de braço dado. “Nesses momentos ninguém se lembra, nem de deus, nem do diabo, e o pouco de respeito devido aos outros santos, que por sinal entre si são unha e carne, vai por água abaixo. Se estamos na igreja, os bancos vão para o ar, nas procissões, chove em tocos de tochas tal qual morcegos, e nas mesas os pratos voam”. Então mais uma vez, percebam como esses cortes são muito rápidos e muito drásticos. E está aqui justamente para criar esses elementos cômicos. Mais uma vez a gente vê essa sobreposição, que “nesses momentos ninguém lembra, nem de deus, nem do diabo”, então há essa dicotomia entre céu e inferno, que vai aparecer o tempo todo. E vejam como o narrador condivide as ideias da população, ele também está um pouco exaltado. Esse é o narrador em terceira pessoa, ele não é o Narrador-personagem, narrador que participa na ação, ele não está, por exemplo, contando para gente de primeira mão uma coisa que ele presenciou, como se ele fosse um jornalista. Não, ele é um narrador que está olhando através do olho de deus. (risos) Nesse contexto, essa expressão ganha significado especial. Ele está falando em terceira pessoa, como se estivesse de cima, como se ele fosse um drone sobrevoando, como se ele tivesse acesso aos vários níveis. Ele pode falar com uma pessoa lá embaixo, no meio do combate, mas ele também sabe a perspectiva da reunião política, que já vai aparecer, e ele também sabe o comportamento da cidade inteira. Ele é um narrador de terceira pessoa e, portanto, a gente esperaria dele que ele fosse neutro. No entanto ele parece ser um pouco imbuído dessa visão popular, porque quando ele descreve, por exemplo, “nesses momentos ninguém se lembra, nem de deus, nem do diabo”, e o “pouco respeito devido aos outros santos vai por água abaixo”, ele está não só replicando esse discurso, mas ele está aceitando esse discurso em uma certa medida. E, essa influência do discurso das personagens no discurso do narrador vai também ser responsável por parte dessa comicidade. Esse amálgama entre discurso de personagem e discurso de narrador, essa influência de uma entidade textual sobre a outra, inclusive é um fenômeno que vai ter um futuro em literatura muito, muito fértil. As vanguardas vão explodir essa relação e vão explorar ela das formas mais variadas. Então essa é uma coisa para se olhar com carinho. Lembrem dela porque ela vai ser muito útil na vida de vocês como leitores. Vamos voltar pro texto.
Imediatamente após a explicação do motivo da briga, aparece a exclamação de um personagem. Esse personagem é o compadre Nino, que vai ser um dos três que vai aparecer nesse conto, com a namorada dele, que será a Sarida, de quem ele é noivo, eles estão prestes a se casar. E o irmão dela, o compadre Turi. No entanto, eu não vou poder analisar a história do Nino, da Sarida e do Turi nesse episódio. – A história vai loooooonge! E eu tenho tentado enganar a mim mesmo de que eu vou conseguir ficar dentro da meia hora!” (risos)

A DISCUSSÃO CONTINUA NO PRÓXIMO EPISÓDIO - 29:54 a 30:23
Então meu caro ouvinte, provavelmente, você vai me amaldiçoar e, provavelmente, vai dizer: “Orras, o Áureo fica falando lá do romance de feuilleton... Eh, tá fazendo igualzinho, óióiói,! Ficou dizendo que o feuilleton sempre acaba no momento mais dramático e o escambau, tá fazendo igualzinho ô!”. Pois é meus queridos! Ficamos com o cliffhanger no episódio de hoje e continuamos A Guerra de Santos no próximo episódio. Um abraço a todos!

 

 

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